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Archive for the ‘havaiana de pau (day life)’ Category

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Perguntei se ela não pensava em morar de novo no Brasil, mas ela disse que não. Que ela até queria muito, mas que ser uma estrangeira com cara de gringa andando por Salvador chamava atenção de um jeito insuportável. Me fez lembrar Lispector, no conto Tentação: “Ser ruivo numa terra de morenos era uma revolta involuntária”. Me fez lembrar como é uma merda não se sentir incluído.

A gente havia se conhecido anos antes, quando ela ainda morava em Salvador, num apartamento sem móveis onde estava acontecendo uma típica festa estranha com gente esquisita. Nem me perguntem como fui parar lá. Eu não conhecia ninguém e sentei no chão ao lado de uma figura com sotaque francês que me ofereceu – um drink? uma cerveja? um cigarro? – uma flor de papel crepom para colocar no cabelo e foi falando comigo como se tivéssemos continuando uma conversa anterior – pois a aula de percussão foi mesmo incrível, mas você também não acha super difícil tocar bongô? – Olha, eu acho quase impossível.

Dias depois, nesta cidade de três milhões de habitantes, nos encontramos por acaso dentro de um ônibus lotado e eu lhe estendi o meu número de telefone anotado:

– Bora marcar num café para terminar aquele papo, sábado estava impossível conversar naquele lugar aleatório. 

– Aquele lugar aleatório era a minha casa kkkkk e, sim, a gente pode se encontrar de novo!

E nos encontramos. No bar, depois da faculdade. Em outras festas estranhas. Nos albergues lotados, cachoeiras, a gente tem foto em todo lugar. Quando ela desistiu de morar no Brasil e voltou para a Europa, foi minha vez de emigrar para um apartamento sem móveis do outro lado do mundo. Ela foi me visitar e ficou dormindo num colchão na sala vazia. Acordava cedo, fazia café e ficava na janela falando de um jeito filosófico:

– Você precisa mudar de endereço…

– Como assim? Esse apartamento é enorme, tem fogão eletrônico!

– Não tem paisagem na janela. Quando você lembrar do país em que viveu, sua primeira lembrança não vai ser a dos pontos turísticos, vai ser da paisagem da sua janela.

Eu olhei pela janela. E entendi do que ela estava falando. Um mês depois, eu já estava morando em outro lugar. 

– O que achou do meu endereço novo?

– Menos aleatório.

Uma vez, quando a gente andava pelas ruas de Lisboa de madrugada, ela implicou que eu precisava conhecer Paris.

– Soube que Paris fede e é cheia de gente mal educada. 

– Isso é bem verdade. Mas é muito perto daqui, você precisa ir.

– Fazer o quê lá??

– Talvez para poder falar mal com mais propriedade. Existem experiências nessa vida que são emblemáticas demais para a gente nem experimentar.

E eu fui a Paris uma vez, depois fui de novo. Nunca deixei de falar mal, mas tinha muito mais elementos para dissertar o meu descontentamento. Detestava a capital da França dessa maneira apaixonada com que a gente odeia algo que é grandioso demais para ser ignorado. Era um prazer descrever cada rua, cada cafeteria, cada esquina de marquises vermelhas e o quanto elas eram insuportáveis, eu tinha material para reclamar uma vida inteira. Voltei uma terceira vez só para ter mais argumento.

Ironicamente, a cidade a quem eu devotava os meus melhores elogios me decepcionou. A volta para Salvador foi de uma desolação kafkaniana, foi como adentrar uma vila abandonada. As portas estavam emocionalmente fechadas, as ruas desertas, não havia mais nada. Quando Gaelle me ligava falando da sua vontade de voltar para a Bahia, eu falava da minha vontade de ir embora da Bahia. Depois, a gente ponderava. Havia isso de não nos destacar, o privilégio de ser mais um. Ela reconhecia que era melhor para ela estar na França e eu reconhecia que era melhor para mim estar no Brasil. A gente já sabia o quanto era uma merda não se sentir incluído.

Agora, ela me ajudava com as tarefas de correspondente, eu enviava as revistas pelo correio para ela praticar o português. E eu imaginava a gente envelhecendo nos dois lados do Atlântico, espelhos invertidos, pessoas que tinham o mundo nas mãos, mas que optaram pelas próprias aldeias. Nunca soube ao certo se isso seria um final feliz. Na verdade, nunca me ocorreu que poderia ser um final.

Hoje, eu estou de coração partido. Como não sentia há alguns anos, as portas fechadas, as ruas desertas. Ninguém do outro lado da linha. Com aquela urgência de viver que só uma morte próxima nos trás. Existem experiências nessa vida que são emblemáticas demais para a gente não experimentar – mesmo que sejam breves, mesmo que não durem para sempre. São vivências tão grandiosas que não podem ser ignoradas. Nunca foi sobre Paris, sempre foi sobre a presença dela.

Hoje, eu fiquei mais só deste lado do Atlântico. Sozinha nesta festa estranha. O mundo inteiro é um lugar aleatório. Sem nenhuma paisagem na janela.

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Eu parei de escrever faz um tempo

Agora, eu acordo bem cedo

Para fotografar os pássaros

Que flutuam no lago do sítio

.

Fotografo árvores centenárias

E cavalos selvagens no campo

Que correm como se houvesse

Lugar para onde fugir

.

Às vezes, levo o rádio comigo

Para ouvir a Bethânia

E ouço notícias de quantos 

morreram hoje de peste

Quantas florestas queimaram

durante a minha ausência

Quantas cidades sem água

Quais manifestantes presos

Na guerra nova que irá

matar crianças aos milhares

.

Outra vez

.

Entardece, eu tiro o sapato

E fico tão só na varanda

Vejo o sol se recolher calado

E nos deixar na escuridão

.

Eu parei de escrever faz um tempo

Eu me sinto tão sem palavras

Eu me basto a fotografar 

Esse mundo

Enquanto ele se acaba

.

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Para mim, este tem sido um ano de tragédias pessoais devastadoras. Tenho recebido o apoio de parentes e amigos. E, estranhamente, em meio ao luto, esse também tem sido um ano de ânimo produtivo. Estou cheia de coragem. Uma situação contraditória que eu não sei bem como explicar.

Aqui, pensando nisso enquanto arrumo gavetas, encontrei as fotos de uma cidade que conheci superficialmente há uns anos atrás, da janela do trem, e que me pareceu bem diferente das imagens que eu tinha visto nos livros de história. O nome da cidade é Manchester, ela fica no interior da Inglaterra.

Uma cidade que viveu dois períodos distintos. Um de prosperidade, quando tornou-se um pólo têxtil e exportava para o mundo todo, na década de 70. Era comum, na maioria das famílias, que todos os adultos trabalhassem nas fábricas de tecidos, que todos os barcos estivessem carregados de tecidos, que a educação fosse voltada para a compreensão das técnicas têxteis. Mas, de repente, a Índia e a China passaram a também produzir tecidos e era impossível competir com elas. 

E ninguém dominava outro ofício. Legiões de desempregados ficaram vagando pelas ruas, os prédios foram ficando sujos e tudo culminou em drogas e criminalidade. A cidade entrou em lenta decadência por duas décadas e, nos livros de história, as imagens eram de abandono.

Mas, acreditem, não há nada tão ruim que não possa piorar. 

Em 1997, houve um ataque terrorista que destruiu um quarteirão inteiro. O mundo ficou estarrecido. E confuso, já que a escolha do alvo não fazia sentido, Manchester não era mais uma cidade relevante para o Reino Unido. Ela estava novamente na capa dos jornais – pelo pior dos motivos – e a repentina solidariedade do mundo motivou os moradores a reconstruirem aquele quarteirão fumegante e destroçado. 

E eles reconstruíram três quarteirões. Depois o bairro. Depois a cidade inteira.

A Manchester que eu vi da janela do trem era de um oásis colorido – escolas, parques, ruas cheias de turistas. Avenidas que jamais lembrariam a indústria abandonada de 20 anos atrás. Imagino que eles não devem se sentir gratos pela bomba, aquilo foi um horror, mas talvez sintam que, às vezes, a vida tem uma maneira meio drástica de nos obrigar a fazer aquilo que a gente precisa fazer. Ou talvez pensem em como uma tragédia lenta pode passar despercebida. Ou em como o olhar repentino de todos, em comoção e expectativa pela recuperação da cidade, teve um poder renovador.

Mais do que nunca, acredito que foi esse olhar de força e incentivo quem conseguiu empoderar as pessoas. Fortalecer a comunidade. E mudar, para sempre, a vida de Manchester. 

Este ano, esse olhar transformou a minha vida.

Quem sabe o seu olhar também possa transformar a vida de alguém. 

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Hoje acordei com a minha caçula pintando as paredes da casa com pasta de dente, alguém deixou um refrigerante estourar no freezer e chegou um e-mail dizendo que meu texto foi recusado por que estava faltando – veja bem – o meu próprio nome. Eram oito da manhã e eu já estava bem chateada, então decidi desabafar com uma colega mandando um áudio de Whatsapp, só que enviei o áudio para um antigo grupo feito em homenagem a ela (o grupo tinha o nome dela e a foto dela no perfil) onde estavam todos os nossos CHEFES E COLEGAS DE TRABALHO. Imediatamente me desculpei com todos, deletei a mensagem e me exclui do grupo e estou desde cedo recebendo dezenas de vídeos motivacionais pelo Whatsapp privado.

Bom dia a todos. 

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Sempre, na última quinta-feira do mês, oito da noite, um vizinho toca trompete. Vizinho ou vizinha, não sei, nunca vi. Dizem que faz isso há anos, dá pra ouvir de vários lugares, é bonito de acompanhar. Pelo som, desconfio que more a dois ou três quarteirões de mim. Pelo repertório, desconfio que é meu parente. A pessoa toca todas as músicas da minha infância.

(Devo dizer que não são canções infantis. Cresci ouvindo boleros castelhanos nos aniversários, nos natais, nos velórios, meus tios brindam qualquer coisa cantando. Família galega, dada à choradeiras latinas, relevem).

Algumas vezes segui a música pela rua para encontrar a localização exata, quase encontrei. Fico imaginando uma prima perdida tentando se comunicar comigo, mandando um sinal. Esperando que eu entenda. Esperando que eu interfone qualquer dia. 

Durante a quarentena, com as ruas excepcionalmente silenciosas, a apresentação fica mais bonita. O pessoal do meu condomínio escuta das varandas e alguns até batem palmas. Dessa vez, não vai dar para sair para procurar o endereço, mas comprei um vinho e carreguei as baterias do gravador. Vou registrar o som, o volume, o vento. Sou boa em procurar as coisas. Preciso apenas que continue tocando.

Portanto, não desista. Falta pouco, prima. 

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El día que me quieras – Carlos Gardel

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